Abandono de recém nascidos

psicologa para criança  na av paulista
Entrevista cedida pela psicóloga Cleonice Ester Rigamonti de Medeiros CRP 06/89208  para  jornalista Ildasio Silva

1 – Em sua opinião, qual o principal motivo que leva uma mãe a abandonar o filho, imediatamente ao seu nascimento? 
São vários fatores que levam uma mulher ao ato de abandonar o próprio filho assim que nasce. Muitas o fazem por desespero, por terem sido abandonadas pelo parceiro, ou por temerem que seus pais descubram, quando tenham recebido uma educação muito conservadora e rígida. Às vezes, um transtorno de personalidade, ou problemas de desordem mental é que as leva a fazer isso; ou o fato de terem sofrido maus tratos na infância, fazendo com que o modelo de mãe que elas têm internalizado seja totalmente distorcido. Outras vezes, pode acontecer, por uma privação financeira muito aguda, fazendo com que a mãe entenda que, abandonando a criança na porta de uma família mais abastada, possa estar ajudando seu filho. Pode ocorrer, ainda, que a gravidez seja fruto de estupro e, nesse caso, ou ela tenta abortar o feto, ou deixa que a gravidez siga adiante, optando por abandonar o bebê, entendendo que não conseguirá desenvolver amor pelo mesmo, uma vez que este sempre a lembrará de como foi concebido. Enfim, muitos são os motivos que podem levar uma mãe a abandonar seu filho recém-nascido.
O ambiente familiar exerce influência muito importante na vida do individuo. Os pais exercem a função de espelho para com os filhos, possibilitando o desenvolvimento psíquico. Um padrão de apego seguro funciona como facilitador para que haja o desenvolvimento da mentalização adequada. Se esse ambiente for aversivo, hostil (havendo nesse contexto trauma por abuso, negligencia etc.), as condições para que ocorra aquisição de um padrão de apego seguro não se configuram. Isso pode levar a uma grande vulnerabilidade, abalando a estrutura psíquica. Daí, pelo fato dessa pessoa não receber amor, não será desenvolvido nela esse sentimento, e, consequentemente, não saberá lidar com o mesmo (sentimento). Como ela não teve a sorte de receber o amor de filha, também, dificilmente, conseguirá desenvolver essa competência. E talvez, por não ter tido ainda nenhum apego com o bebê, se torne mais oportuno abandona-lo logo que nasça. Ela sequer tem noção do que é o amor de mãe, uma vez que não teve a figura materna presente em sua vida.
Estudos confirmam que mães que abandonam seus filhos tiveram a infância negligenciada das necessidades mais básicas; muitas delas, sofreram maus tratos, abandono, violência moral, sexual etc.
Os pais são figuras de autoridade e, através deles, são transmitidos os modelos adequados ou inadequados para os filhos. A tendência, no futuro, é que os filhos reproduzam o modelo que lhes for apresentado. Sabe-se que um grande número de criminosos comete crimes ligados ao tipo de violência que sofreram na infância.
É claro que não se pode generalizar. Não é necessariamente porque uma pessoa sofreu maus tratos na infância que irá abandonar sua prole, mas em muitos casos de abandono se deve a isso.

2 – Algumas mães, não se contentando em largar a criança que dera à luz, preferem vê-la morta (como foi o caso do bebê abandonado em uma caçamba de lixo, na Praia Grande). Como explicar e definir o perfil de quem comete esse tipo de delito?
Muitos casos denotam mais um surto psicótico, desencadeado por desordens psíquicas. Por exemplo, as derivadas do estado puerperal, tão graves, que os crimes cometidos sob essa circunstância são com requinte de crueldade. O estado puerperal se dá quando a mulher, após a expulsão da placenta e o seu corpo ter retornado ao estado anterior a gravidez, é acometida de uma depressão tão forte, que, inconscientemente, é capaz de matar seu próprio filho recém-nascido. Ela não o aceita, não o quer amamentar, nem cuida-lo. 
De acordo com as leis brasileiras, o infanticídio tem pena diferente do homicídio comum, uma vez que o abandono ou assassinato de recém nascido praticado pela genitora, face ao estado puerperal, é levado em conta.

3 – Você acha que os jovens estão mais propícios a esse tipo de atitude?
Cada caso deve ser visto de acordo com o histórico da pessoa envolvida, com o tipo de vida que ela está vivendo, suas experiências, seus traumas, suas atuais necessidades etc. Por exemplo, uma mulher de pouco mais de 30 anos teve filhos gêmeos, fruto de um estupro, não querendo ela aborta-los, ainda que, nesse caso, a lei permite, preferiu seguir com a gravidez até o fim, disposta a entrega-los assim que nascessem. No desespero, ela até pensou em coloca-los no lixo caso não aparecesse alguém querendo adota-los; não por maldade, mas por ter sido levada por uma linha de raciocínio em que o lixeiro passa todos os dias, logo seus bebês não ficariam ali por muito tempo.
São as mais diversas dinâmicas psíquicas que levam uma pessoa a tomar atitudes consideradas pela sociedade de perversa. Acredito que independe da idade. Muitas vezes, o individuo é motivado a certas escolhas contaminado por pensamentos que fazem parte do seu mundo interno. Tais pessoas não devem ser julgadas e condenadas simplesmente, mas acolhidas e tratadas.
É difícil, para pessoas que tiveram uma estruturação familiar adequada, que receberam educação apropriada, não emitir um juízo de valor para aquelas que cometem tais delitos; mas para a psicologia, que é uma ciência que estuda a mente e o comportamento humano, essas condutas são vistas, muitas vezes, como patológicas.

4 – Os órgãos públicos têm dispositivos para auxiliar e intervir?
No que diz respeito à saúde, à educação e à segurança, o Estado brasileiro deixa muito a desejar. Basta olhar para as praças públicas, para debaixo dos viadutos, das marquises dos prédios da cidade e ver a quantidade de gente desamparada, para se ter idéia do descaso das autoridades brasileiras em relação aos necessitados. Infelizmente, neste país, onde a corrupção é descarada e os políticos se reelegem, ou elegem seus indicados em troca de uma mísera cesta básica, que gira em torno de R$ 50,00, só se consegue algum direito batalhando-se muito por ele. E quem se acha num estado lamentável, capaz de abandonar seu próprio filho, que forças tem para lutar por seus direitos?
Agora eu pergunto: será que a culpa é apenas dos políticos? Tem um adágio popular que diz que cada povo tem o governo que merece. Se não fosse o egoísmo das classes dominantes, o aspecto social poderia ser bem melhor.

5 – Num modelo de cidade, onde tudo funciona, no que se refere à habitação, transporte, saúde, etc, você acredita que eventos como estes continuariam a ocorrer, ou até no mais perfeito modelo de cidade isto foge de controle?
Primeiro, que não existe modelo perfeito de cidade, uma vez que elas são formadas por homens e estes são imperfeitos. Como pode um Ser imperfeito construir alguma coisa perfeita?
Segundo, que, conforme explanação acima, os abandonos não decorrem apenas da falta de habitação, de transporte e de recurso de saúde. Muitas vezes, são decorrentes de distúrbios psíquicos; assim como de problemas no ambiente familiar, que tenham afetado o estado emocional da prole.
Não existe sociedade perfeita onde não haja desvio de conduta, perturbação psíquica, caso de alcoolismo, estupro etc. De forma que eventos dessa natureza vão continuar existindo. Como jamais existirá uma sociedade totalmente ajustada, sempre haverá comportamentos inadequados.